quinta-feira, 6 de maio de 2010

Gripe Suína

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DOS NEURÔNIOS
ciência sem arte é burra, arte sem ciência é cega.
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20.7.09
Parece Exagero de Nelson Vaz
Parece exagero. Em pleno século XXI, seguimos literalmente a proposta da Teoria
dos Germes (Pasteur, 1878), segundo a qual as doenças infecciosas são determinadas
(causadas, especificadas) pelo contágio com germes específicos. Na realidade, a idéia
de contágio com "sementes" invisíveis precede a Teoria dos Germes por mais de 300
anos, pois já era discutida em um livro de Girolamo Fracastoro, em 1534. Parece
impossível, mas somos guiados por idéias criadas há meio milênio. Pois ao pensar na
"gripe suína", imaginamos que a doença é determinada (causada, especificada) pelo
contágio com o vírus influenza A-H1N1. Em geral, usamos também a idéia de que a
proteção contra esta doença depende da produção de anticorpos neutralizantes,
exatamente como proposto por Behring e Kitasato (1890), ao caracterizarem os
primeiros anticorpos neutralizantes, as antitoxinas contra a tétano e a difteria.
Finalmente, também acreditamos que a solução deste problema depende de uma
vacina a ser fabricada a partir na atenuação do vírus A-H1N1, por um método ainda a
ser inventado e testado empiricamente. Não surpreende, portanto, que os dados que
circulam na imprensa sobre a "gripe suína" sejam tão confusas, pois em plena Idade
Mídia, ainda usamos conceitos da Idade Média.
Todos os imunologistas sabem que as doenças infecciosas não são determinadas
(causadas, especificadas) pelo contágio com agentes infecciosos (micróbios vírus ou
parasitas) específicos. Como discutido em um lindo artigo de René Dubos (1974), o
próprio Pasteur sabia que o terreno (terrain), a suscetibilidade individual, é o que
determina (causa, especifica) se, ocorrido o contágio, a doença ocorrerá ou não. Os
imunologistas sabem que há indivíduos que são portadores sãos de agentes
infecciosos potencialmente patogênicos, pois lembram de Mary Mallon, a Typhoid
Mary, que disseminava a febre tifóide sem ser afetada pela Salmonella typhi (Leavitt,
1996). E sabem também dos germes oportunistas que, usualmente, não são
patogênicos, mas lesam organismos debilitados.
Todos os imunologistas sabem que muito são raras as doenças nas quais a mera
presença de anticorpos neutralizantes pode ser apontada como substrato da proteção
imunológica. E sabem ainda que quase todas as vacinas de que dispomos foram
inventadas de maneira empírica, por experiência e erro, pois não conhecemos regras
para a atenuação de agentes infecciosos, inventada por Pasteur, nem os mecanismos
dos quais resulta a proteção. Há, inclusive, propostas recentes de fundir vacinas que
conferem uma proteção duradoura e eficaz, como a vacina contra a febre amarela,
com antígenos de outros agentes infecciosos, por exemplo, da malária, porque não
sabemos ainda inventar uma vacina duradoura e eficaz contra a malária (Lambert, Liu
and Siegrist, 2005).
Mas, os imunologistas que podem dizer tudo isto em poucas palavras, não o fazem
porque a sociedade não suportaria tamanha descrença sobre a medicina. Não toleraria
saber que a medicina científica do século XXI tem aspectos comparáveis a práticas
empíricas e obscuras de medicinas alternativas do passado remoto Seria difícil
reconhecer que ainda não entendemos adequadamente as doenças e por isso não
dispomos de métodos eficazes de intervenção ou de prevenção. Que não entendemos
o adoecer porque não entendemos o viver saudável. Quando Reitor da UFMG, Tomaz
Mota Santos, um imunologista, disse que "com as campanhas de vacinação, os
governos querem resolver contradições sociais". Mesmo sem entender as doenças,
sabemos que a melhor forma de proteção é uma vida limpa e digna, como sabiam os
Higienistas parisienses que deram apoio às idéias de Pasteur, pois sabiam que elas
ajudariam a melhorar as condições de vida de populações desvalidas (Latour, 1988).
Há contradições também no que digo. Uma característica da pandemia de influenza
de 1918, na qual um vírus similar ao A-H1N1 da pandemia atual matou dezenas de
milhões de pessoas, era provocar doença mais grave em adultos jovens, que em
crianças e velhos, como se o vigor da reação ao vírus, fosse um fator de risco. Não
basta ser jovem e viver uma vida limpa e digna para estar livre de doenças
infecciosas. Os imunologistas podem dizer tudo isto. Ao não dizê-lo, aumentam a
nossa dívida com a dúvida.

Referências
Behring, E. and S. Kitasato (1890). The mechanism of immunity in animals to diphteria and
tetanus. Milestones in Microbiology. e. T.Brock. Washington,D.C., Am.Soc.Microbiol.: 138-
140.
Dubos, R. (1974). "Pasteur’s Dilemma-The Road Not Taken."
AMS-News 40(9): 703-709.
Lambert, P.-H., M. Liu, Siegrist, C-.A. (2005). "Can successful vaccines tell us how to
induce efficent protective immune responses?" Nature Medicine 11(4): 554-562.
Latour, B. (1988)The Pasteurization of France
Cambridge, Mass, Harvard University Press.
Leavitt, J. W. (1996). Typhoid Mary, Captive to the Public Health. New York, Beacon
Press.
Pasteur, L. (1878). "The germ theory and its application to medicine and surgery." Comp.
Rend. de l"acad. Sci. 86: 1037-1043.

Nelson Vaz é médico de formação, e um dos cientistas mais importantes da
imunologia mundial, fundador desta ciência no Brasil, é Professor Emérito de
Imunologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Membro da Academia
Brasileira de Ciências, e Membro honorário da Academia Portuguesa de Imunologia.

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